O CANTO DO
EXÍLIO
por Antônio
Hohlfeldt
Jornal:
Correio do Povo
P Alegre/RS em
21 de agosto de 1971
“Para
melhor querer-te
Porto Alegre
é estar de ti ausente
há tanto tempo
estações inexpressivas
alma vazia
memória ardente
(...)
Para melhor querer-te
e de qualquer modo não te esqueceria
é que venho voltando ao sul
nestes invernos, talvez nestes últimos invernos.”
Luis Carlos de Arapey escreveu estes versos num mês de julho
de 1968. Mas depois deste inverno, ele já voltou aos pagos muitas outras vezes,
como essa, em que tivemos oportunidade de conhecê-lo. Uma das características deste poeta gaúcho,
“exilado”, como ele mesmo diz, há muitos anos, em São Paulo, é a duplicidade
lingüística em que ele elabora seus trabalhos. Nascido no Uruguai,
transferindo-se para o Brasil por um simples acaso – queria cursar a escola que
estava do outro lado da linha divisória, onde havia uniforme e negrinhos como
companheiros. Sua mãe, apesar de brasileira, não sabia escrever português,
conhecia apenas o espanhol. Arapey, conheceu sempre as duas línguas. Por isso,
sem intenção, por vezes um poema iniciado em uma língua terminada em outra,
como aquele que o Caderno de Sábado publicou há pouco tempo*. “É como o prazer
de uma leitura, a música reiterada. Prova de que a língua, alma de um povo –
deixa ressonância, raízes no menino que fui, transformado em homem através de
duas línguas”.
A NOSTALGIA DO EXÍLIO
A nostalgia, a
saudade, a tristeza – essas palavras que ou outros vocabulários não conhecem
tão plenamente como nós – embora talvez sintam os mesmos sentimentos, são os
temas constantes de Arapey, como neste poema, “Destino”.
“Podes
calcular o impacto
causado pela tua chamada
quando
outra vez
a tarde dourada ia em meio?
E
deves saber por que
eu te considerava perdida para sempre
neste ou noutro território.
Disseste
que me querias ver...
a mim mesmo?
Ou
a imagem atual
sofrida e desfigurada?!
Ah!
Destino!
O
que nos reservas
Antes
da morte, Destino!”
“Acredito que
tudo seja, para mim, reflexos de uma certa nostalgia de um território perdido,
a infância, o campo, o tipo de gente, os seres mais humanos que já conheci. Não
esqueci jamais o símbolo de Martin Fierro, o gaúcho cruzado com o emigrante,
lutando contra a decadência, porque mesmo antes de o gaúcho perder a sua terra,
ele já sabia que houvera uma anterior gauchada, em que não existiam nem
fronteiras nem estâncias com cercas”.
OS GRANDES SILÊNCIOS
Arapey atribui,
em grande parte, à tradição analfabeta dos narradores orais, os mais velhos, o
seu aprendizado dos temas gaúchos. E pensando sobre a poesia como um fenômeno
reflexível, diz que “da leitura dos poemas pode-se sempre tirar a reportagem do
sentido da vida, da situação, de um estágio, a carga de valores, a modificação
de nossa vida. Matei muito do que havia em mim ao seguir para São Paulo. É como
um crime que se faz diariamente, no meu entender: há certas peças musicais que
são tão íntimas, que não deveriam ser aplaudidas. O aplauso que se lhes dá,
corta esta espécie de magnetização que sofremos no seu decorrer. O encanto fica
quebrado, e isso faz sofrer”.
Arapey gosta das
ruas sossegadas, dos grandes silêncios, das calmarias dos campos em suas
amplidões sem fim. Talvez por isso ele se desespera no meio dos edifícios altos
que o cerram numa quase prisão, e escreve assim:
“Estranha
alegria que nos vem do desespero!
De
que adiantou perdão reiterado
e compreensão permanente?
Madrugadas
erguem-se em fria bruma
como fantasmas.
Gosto
amargo que não passa.
Desilusão
e mais desilusão.
Que
dizer
quando o próprio sol nos parece
de gelo.
Aí
está o mundo!
Vida
renascendo!
Se
não fosse o amor da verdade
não haveria drama.
Nós
queremos mais do que humanos!
sem, no entanto, perseguirmos fria perfeição.
Múltiplas
solicitações perturbam o propósito
de autenticidade!”
O debate íntimo
em que Luis Carlos de Arapey vive é reflexo do próprio debate que construiu
objetivamente em seu mundo. “O artista dá de si aquilo que lhe parece mas apto,
revelando-se, muitas vezes, para si mesmo, com uma certa surpresa. Comecei a
escrever intencionalmente aos 20 anos. Talvez pelo ambiente que tive - as
reuniões dos familiares, todos eles palestrantes de primeira linhagem que me
empolgavam com seus diálogos sobre os quais eu me indagava de tudo o que era
possível. Mas talvez nunca tivessem nascido poemas. Lia muito, e comecei a descobrir que também
podia escrever algo”.
O CAVALO NOS 14 ANOS
O aluno do
compositor Natho Henn, instigado por sua avó, que queria que ele escrevesse
suas memórias infantis, a cidade, Arapey evoluiu. Não aceita o depoimento puro
e simples, frio, pois “é algo tardio que tira a lucidez”. Quando se está triste
e no exílio, “sinto a nulidade de um sábado vazio”, que lhe lembra
constantemente o por-de-sol do Guaíba, ao qual “até os animais são sensíveis,
pois que também eles são sensíveis a seus habitats, talvez mesmo mais do que
nós, seres humanos. Tudo o que é desumano é infame, é um desastre organizado,
matando a alegria, tirando as referências do céu, da paisagem, do respirar
livremente. Todos os paulistas sabem disso, por isso fogem da capital, e, no
entanto, foram aqueles homens mesmos que criaram o seu “castelo”, conforme nos
contou Kafka”.
Uma preocupação
de Luis Carlos de Arapey é não tornar-se demasiadamente citativo de livros e
trechos de obras que leu. Mas a nossa conversa decorre num sábado de morno
pós-almoço, em que uma certa modorra invade a sala em que estamos, e a
conversa, estigmatizada por claros de silêncios, transita livre entre ambos,
fluindo lenta e despreocupada, num ir e vir sem fim, sem linha, sem regra, sem
tempo, porque o tempo, aí, é todo ele total.
“Não gosto de fazer citações a todo o momento -
embora tenha a tendência para tal, pois que sei que em cultura, tudo o
que se tem a aprender é monumentalmente superior ao aprendido. Disse isso há
dez anos, e o direi daqui a outros dez”.
Foi no primeiro
emprego que Arapey aprendeu a andar a cavalo, percorrendo todos os pagos,
fazendo amizade com gaudérios, aos 14 anos de idade, enfrentando chuvaradas. “O
cavalo é quase gente. Nunca dei-lhe de relho ou espora. Ele conhece a gente; o
meu era um picaço malacara, tipo aquele do Tom Mix ( o do Buck Jones era
Silver, não,) e se fica conhecendo até as suas manhas. Como gostei do cinema da
década de trinta, quando o cowboy, que nos era tão familiar, aparecia na tela,
em tudo semelhante a nós, que éramos inaptos para entender as tragédias que não
as nossas mesmas”.
PÁSSAROS DESPERTOS
Poesia poemas,
“pássaros que despertamos, terra e frutos compartilhados”, segundo ele, que
acrescenta, em outro momento,
«Nunca
escrevi por escrever
nem estou vivendo ainda
por viver».
E preocupa-se ele:
«Meus
filhos amarão meus versos,
A
todos transmiti vida.
Meus
três herdeiros crescerão muito
e meus três livros darão testemunho
de esforço sobre-humano.
Agora - e
como sempre -
penso naqueles que eu amo
e sei que me querem também.
Eles
confirmarão
que não tive existência vã,
não me deixei ir à deriva,
nem pertenci aos que traíram
a própria condição humana!»
_________________
Os livros de
Arapey “Poemas do Tempo Frágil”, editado no Rio; “O Dia Sobre o Rio”, em São
Paulo, e “Dos Senhores e das Batalhas”, que ele editará em breve, marcam, de
dez em dez anos, um passo a mais que o poeta dá. 1951, 1961, 1971. Assim é
Arapey. A literatura pelo que ela tem de humano. Pelo que revela de cada um.
Completando cinqüenta anos em abril passado, dos quais trinta dedicados à
poesia, que “implica uma responsabilidade de cumprir o ideário justo, pois que
ela é uma declaração de princípios, segundo eu a entendo”, sua grande ambição é
continuar a estirpe não apenas de sua família como de sua terra”.
LEMBRANÇAS EXILADAS
Arapey faz de coisas miúdas a
importância de sua vida. Por exemplo, tem anotado tudo o que leu até hoje,
desde 1935, quando recebeu dois volumes de Jules Verne, ainda em Montevidéu.
Por isso, possivelmente, sua gratidão para com a língua que por primeiro
conhecer fá-lo escrever assim:
Prodigio de la lengua que hablamos ahora
raramente
despertada con amor en estos días tan
hermosos,
para que la entiendas y la quieras
conociendo así,
nuevos caminos soleados
en tu vida lúcida,
inteligente, y
gererosamente tuya.
Tiene alma la lengua castellana,
que te será hermana gemela.
¿No lo sabes? ?Lo presientes?
¡Ya lo sabras!
De um de seus vários amigos,
Nilson Bertolini, que teve um livro de poemas editados postumamente pela Globo,
pois que suicidou-se com apenas 24 anos de idade, Arapey recorda os versos, “adeus, minha janela escura / adeus meu
sonho desfeito. / Meu bosque de madressilva / minha palavra sem jeito / ninhos
de folhas secas / dançarão sobre o meu peito”. Dos tempos de Porto Alegre,
Arapey recorda o Gastal, “que via poesia no cinema”, ou o Mário Quintana, com
quem jogava, poemas nas mãos: “Si me muestras, te muestro”, discutindo e
observando um ao outro, os poemas criados. Daquela época, na evocação, ele hoje
canta com saudades:
Es mui chica
y es alta la ventana de mi alcova
todas las noches hé de mirar al cielo
y tendré el alma trespassada de estrellas!
“O poeta tem de ser um lunático,
excedendo as normas comuns da convivência, concluiu o poeta”. Na saída, ainda
dedo apontado para mim como ele costuma fazer, sempre que declamava uns versos,
me recitou: ÚLTIMO ADEUS
«Gostaria
de dizer no meu último poema
que lamento estar morrendo
longe da terra azul que sempre amei!
Então, tinha sabor o pão cotidiano.
Pessoas eram pessoas, e animais, animais.
Hoje, tudo me parece haver sido apenas sonho
pendente das janelas do pesadelo.
Paisagem desolada
sopra vento sinistro.
Pergunto: até quando agoniza uma alma?
Houve suave anjo que me deu amor
e não creio seja mais possível
nesta miserável área do mundo.
Até o último momento
lembrarei com imensa ternura
a todos que também amei.
Não há enigmas para decifrar
e sim
estágio de sociedade a ser superado».
No apertar minha mão, deixou-me
um papel, papel escuro de folha de jornal, em que, a lápis, rabiscou,
rapidamente: “Nunca me despeço, realmente, do nosso sul, porque à minha alma é
difícil de sair daqui”, e essa frase simples ficou flutuando no ar, enchendo de
aromas a sala, vingando saudade nos corações dos amigos aqui reencontrados por
ele. O poeta voltou ao exílio.